Há dois anos debati neste espaço as pressões latentes da inflação e a principal entre elas era o
desalinhamento entre os preços de bens industriais e serviços provocada pela restrição à mobilidade
social devido à crise sanitária (covid-19). Naquele momento a indicação era que passada a pandemia,
a reflação dos serviços seria inevitável e demandaria aperto monetário. Agora, depois da população
vacinada, liberação de todas as restrições de circulação de pessoas, apenas 33% de trabalho remoto e
1.175 pontos de alta dos juros, o realinhamento de preços está quase completo. Até o próximo choque,
a pressão inflacionária está em grande parte no retrovisor.
Mudança de preço relativo pode ser caracterizada como um choque – sendo o afastamento de preços
entre segmentos da economia temporário – ou como tendência – sendo este afastamento permanente.
Entre 2011 e 2014, a recomposição em termos reais da renda das classes sociais mais baixas via reajuste
significativo do salário mínimo, ganhos de rendimento dos ocupados e programas assistenciais
causaram o aumento permanente dos preços de serviços em relação aos demais. O aumento do poder
de compra inseriu o consumo de serviços na cesta de bens dessas famílias. Neste caso, este setor
teve ao mesmo tempo: alta da demanda e do custo, uma vez que é intensivo em trabalho – ambiente
perfeito para a mudança do relativo de preços entre setores, que poderia ter sido permanente caso não
fosse a recessão do período de 2015 a 2016.
Já a pandemia da covid-19 foi um choque temporário nos preços relativos, apesar de longo. Seus efeitos
sobre as decisões dos agentes com relação ao consumo, à produção e à formação de preços, foram
reduzindo conforme a vacinação avançou e as restrições à mobilidade desapareceram. O problema foi
que tanto tivemos vacinação mais lenta que o necessário quanto as políticas de suporte a renda foram
mais duradouras que o recomendável.
Segundo a inflação apurada pelo IPCA (IBGE), o afastamento entre a inflação do grupo de bens
industriais e de alimentos e do grupo de serviços – excluindo educação, passagem aérea e aluguel de
carro – foi contínuo desde o início da pandemia, atingindo 7,1% no seu auge em janeiro de 2021, e
persistindo até o segundo semestre de 2022.
Grande parte da persistência da inflação de serviços veio do choque de demanda motivado pelas
políticas de suporte a renda: fiscal e monetária. Em janeiro de 2020, o ritmo da variação anual média
dos preços desses dois grupos era muito similar – 3,3% e 3,8%, respectivamente. Contudo, no segundo
semestre de 2020, a combinação da restrição de mobilidade, da redução na oferta de bens e das
políticas de suporte a renda em resposta a pandemia causou um drástico aumento da demanda por
bens industriais e alimentos e queda do consumo de serviços.
Em 2021, o desalinhamento dos preços relativos persistiu em 4%, mesmo com o início do processo
de reflação dos serviços com a maior mobilidade social, devido à extensão do suporte à renda em
diferentes gradações – taxa de juro real abaixo da neutra na primeira metade do ano e a manutenção
do auxílio emergencial para a população vulnerável.
Somente agora, nos sete primeiros meses de 2023, ocorreu o realinhamento dos preços relativos,
passando de 3,5% em janeiro para 1,1% em julho, como resposta à queda dos preços de commodities,
à apreciação da taxa de câmbio e à alta dos juros. E temos pela frente os impactos da deflação de
9,7% dos bens industriais e da deflação de 16,0% dos alimentos no acumulado de 12 meses até julho,
de acordo com o IPA-DI. Ambos devem promover mais desinflação dos preços de bens industriais e
alimentos e desinflação dos serviços via redução dos custos de matéria-prima. Isto é bom sinal para o
cenário de corte de juros, pois mostra espaço para a inflação de serviços cair do patamar atual de 5,6%.
Saímos da pandemia e subimos os juros para combater os efeitos secundários dos choques de oferta
e demanda sofridos. Hoje, próximos do fim do processo de realinhamento dos preços, a inflação de
serviços está em tendência de queda, com maior probabilidade de manter-se nesta direção.
A decisão de política monetária está nesta página. Agora as incertezas/fontes de pressões são os
impactos sobre a taxa de câmbio do aumento da aversão a risco internacional e da indefinição da
discussão fiscal. A mitigação desses riscos poderia levar a trajetória de queda da Selic ir além das
expectativas do mercado já em 2024.
Tatiana Pinheiro é economista-chefe de Brasil da Galapagos Capital e
escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente, às sextas-feiras