O conflito e os juros

Muito das expectativas de cortes de juros nos emergentes, que vinham sendo apontadas como um ponto de atratividade desses mercados em meio aos riscos globais, foram desprecificadas. A perspectiva de juros mais altos nos EUA vem se somando à percepção de que o mundo se tornou um lugar mais perigoso, especialmente depois dos ataques do Hamas em Israel em 7 de outubro. Tal como as guerras
passadas no Oriente Médio, o conflito atual, se agravado, tem o potencial de pressionar os preços do
petróleo e reduzir o crescimento global. Neste artigo, discuto como o conflito pode afetar uma outra
variável: os preços dos fretes, variável-chave, mas frequentemente negligenciada na análise da inflação.


A importância do frete para a formação de preços nos diferentes países já aparecia em eventos acidentais como o bloqueio por 6 dias do Canal de Suez em março de 2021, quando um navio de contêineres encalhou causando uma fila de pelo menos 369 navios com carga estimada de US$ 9,6 bilhões. Mas ficou clara com a covid-19 e a restrição à mobilidade social. Segundo o MSCI Composite (Índice de Custo de Frete Marítimo Global), o custo do frete subiu 579% em média entre março de 2020 e setembro de 2021 e foi um dos fatores principais para a elevação da inflação mundial, que saltou de 3,2% para 8,7% entre 2020 e 2022.


A pergunta então é se a crise no Oriente Médio poderia reavivar as pressões de custo de frete. Há pelo menos três rotas comerciais que poderiam ser afetadas pelo conflito atual: Canal de Suez, Golfo de Áden (Estreito de Babelmândebe) e Estreito de Ormuz. O Canal de Suez fica no Egito, liga o Mar Mediterrâneo com o Mar Vermelho e 12% do comércio global em volume e 10% do total de petróleo passa por esta rota marítima. O Estreito de Babelmândebe fica no norte do Oceano Índico, entre a Somália e o Iêmen, é via marítima essencial para o petróleo do Golfo Pérsico. O Estreito de Ormuz localizado na Península Arábica e o Irã, é a rota de escoamento de petróleo oriundo dos países árabes e transporta cerca de 40% do tráfego marítimo petroleiro mundial.

Busquei entender qual o potencial impacto inflacionário de um bloqueio marítimo na região em conflito. A conclusão, obtida a partir de um modelo econométrico, é de que o impacto inflacionário de uma alta nos fretes – caso ocorra – seria bastante significativo e perduraria por mais de um ano, criando mais um obstáculo à convergência da inflação para as metas aqui e no exterior. Isto endossa o aumento da percepção de riscos nos mercados.


Meu modelo usa os dados de inflação ao consumidor e custos de frete (representado pelo MSCI Composite, que considera o Canal de Suez e Golfo de Áden, entre outros), tendo preço de commodities
como variável de controle para isolar o custo de transporte da alta dos preços básicos de insumos. As
estimativas sugerem que, do pico de 7,5% alcançado pela inflação média dos países avançados em meados de 2022, 2,2 ponto porcentual teria sido causado pela alta do custo de frete. Para emergentes,
o efeito foi menor, com fretes respondendo por 1,5 ponto porcentual do pico de 8% da inflação média do grupo. A função impulso-resposta sugere que o pico do efeito inflacionário se dá 15 meses após o
choque no preço dos fretes.


Estendendo o exercício e rodando simulações para a inflação futura, chego a um cenário binário. Se
o conflito não atingir as rotas comerciais, a inflação global deve seguir em queda. Porém, se as rotas
forem impactadas, não se pode descartar o choque de oferta resultando em pressão inflacionária pior
que o de 2021/2022, dada a relevância no comércio mundial das rotas em questão – o caminho mais
curto entre Ásia e Ocidente.


Por enquanto, o preço dos fretes segue em tendência de queda, sem precificar risco com o conflito.
Assim, apesar da incerteza com a inflação e a condução da política monetária ter aumentado, isto não
deve mudar a disposição do Banco Central de seguir cortando os juros – que, ademais, ainda implicam
uma política monetária bastante apertada em 6,5% em termos reais, mesmo com os prováveis cortes
de 0,5 ponto porcentual nas duas últimas reuniões deste ano.


A incerteza e a tendência de maior cautela na condução da política monetária é um tema mais para
o ano que vem do que para as decisões de novembro e de dezembro: como visto, o impacto do
frete ocorre com uma defasagem significativa. Caso o cenário externo mais adverso se concretize, não
escaparemos da redução do ritmo dos cortes, à medida que os juros se aproximem do nível que o BCB
perceba como neutro. Em termos práticos, para conter os efeitos secundários do choque de oferta
sobre a inflação, a Selic demoraria mais para atingir o juro terminal de 8,5% projetado pelos analistas
ouvidos pela pesquisa Focus. Na ausência de problemas desta natureza, acredito que a tendência de
juros e inflação aqui e no mundo seja a mesma de antes do conflito – de queda.


Tatiana Pinheiro é economista-chefe de Brasil da Galapagos Capital e
escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente, às sextas-feiras

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