O sistema multilateral de comércio, construído ao longo de décadas com base em regras e compromissos internacionais, atravessa um momento de profunda incerteza. Um dos principais vetores dessa instabilidade é a política tarifária adotada pelos Estados Unidos, especialmente quando justificada por motivos de segurança nacional. Em um painel que reuniu especialistas de destaque em história econômica, direito comercial e macroeconomia, discutiu-se o impacto dessas medidas unilaterais sobre a credibilidade da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o risco de fragmentação do comércio global.
O ponto central da discussão foi que o problema não são apenas as tarifas em si, mas sim o que elas representam: uma erosão preocupante da confiança nas regras e instituições que sustentam o comércio internacional. A postura dos EUA coloca em xeque princípios fundamentais da OMC, como a cláusula de Nação Mais Favorecida e os compromissos tarifários vinculantes. Com isso, cresce o risco de um retrocesso para um sistema baseado em disputas e medidas unilaterais, o que pode levar a uma fragmentação comercial duradoura, com impactos para países grandes e pequenos, desenvolvidos e emergentes.
Para o historiador Harold James, da Princeton University, não se trata apenas de uma repetição da política de “beggar-thy-neighbor”* dos anos 1930, mas de um cenário ainda mais alarmante: estamos entrando em uma lógica de “beggar myself”, ou seja, medidas que acabam prejudicando o próprio país que as adota. Ele relembrou que, nos anos 1930, tarifas e cotas aceleraram o colapso do sistema multilateral, minaram a democracia e abriram caminho para a guerra.
Do ponto de vista jurídico, a professora Jennifer Hillman, da Georgetown University, argumenta que as tarifas impostas sob o governo Trump violam as regras da OMC e até extrapolam os limites da Constituição dos EUA. Segundo ela, o uso de uma legislação de emergência nacional para justificar tarifas vai além do que a lei permite, e por isso, diversas ações judiciais têm contestado a utilização desse ato.
As consequências econômicas também são significativas. De acordo com Ralph Ossa, economista-chefe da OMC, o comércio global de bens deve encolher 0,2% em 2025 por conta das tarifas atuais. Na visão dele, essa queda pode se aprofundar em 0,6 ponto percentual caso tarifas retaliatórias ocorram. A incerteza gerada pela política comercial também afeta negativamente os serviços, com impactos em transporte, conectividade e até serviços digitais.
Os efeitos dessas políticas não se limitam aos principais atores do conflito (EUA e China). Além da China, países em desenvolvimento como Bangladesh e Camboja, que dependem do acesso ao mercado americano, estão entre os mais vulneráveis. Mesmo a Europa pode ser afetada, com risco de perda de acesso preferencial aos EUA.
Mas, afinal, a pergunta dos painelistas é: por que os EUA mantêm essa postura, apesar dos riscos e os efeitos negativos sobre sua própria economia?
Para Chad Bown, do Peterson Institute, a estratégia americana atual está centrada na segurança nacional: a concentração de cadeias produtivas críticas (como semicondutores e minerais estratégicos) na China é vista como um risco sistêmico. Os EUA se preocupa com o modelo econômico da China, marcado por subsídios ocultos, falta de transparência e práticas incompatíveis com economias de mercado.
Ainda assim, a eficácia das tarifas para alcançar objetivos econômicos é altamente questionável, na opinião dos especialistas. Mesmo que a produção retorne para os EUA, o chamado “reshoring”, estima-se que o impacto sobre o emprego seria mínimo, porque a indústria moderna é altamente automatizada. As tarifas, portanto, pouco contribuíram para geração líquida de empregos.
Se o objetivo for reduzir o déficit comercial dos EUA, os especialistas indicam a consolidação da política fiscal interna como melhor alternativa para reduzir consumo e, consequentemente, reduzir o déficit comercial. Cortar gastos públicos e melhorar a arrecadação é uma forma mais eficaz de corrigir desequilíbrios, sem comprometer o sistema multilateral de comércio.
A visão geral é um reforço do que vem sendo dito ao longo dos dias no Encontro de Primavera do FMI: o momento é de fortalecer o diálogo multilateral, reformar as instituições e renovar a confiança nas regras que sustentam a integração econômica global. Caso contrário, há o risco de uma nova era de incerteza, protecionismo e instabilidade.*“Beggar thy neighbor” é uma expressão clássica da economia que descreve políticas econômicas adotadas por um país com o objetivo de melhorar sua própria situação às custas de outros países.
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Produzido por Tatiana Pinheiro, economista-chefe da Galapagos Capital